Como Martim Luther King se tornou um negro furioso
Por: John Blake, CNN
16-abr-2013
Ele estava barbudo, sujo e abatido. Luther King passara
vários dias sozinho, em confinamento solitário, sem colchão, em uma cela escura
e imunda em Birmingham, Alabama.
"Leve isso para fora", King sussurrou enquanto pegava
o cinto de Jones e colocava jornais e pedaços de papel higiênico nos bolsos de
suas calças.
Jones, advogado de King, ponderou se Luther King não estaria
desabando. Ele não prestou atenção ao que King
lhe dera - era apenas uma miscelânea de palavras e setas rabiscadas em pedaços
de papel.
"Não, até cinco dias depois quando li uma cópia
mimeografada da carta", diz Jones. "Para ser
honesto com você, eu estava mais preocupado com o dinheiro da fiança e não com
o que ele havia escrito."
Milhões de pessoas já leram o que Jones ignorou no primeiro
momento. Hoje, quando a nação comemora o 50º aniversário da "Carta
da prisão de Birmingham" de Luther King (em
16 abr 2013), o documento se tornou uma epístola americana. É considerado uma defesa clássica da desobediência civil.
Mas aqueles que veem a carta de King como apenas um tratado
sobre a resistência não-violenta, cometem o mesmo erro que o advogado de King
fez: eles não percebem o que é diferencial sobre algo que está bem diante de
seus olhos, dizem alguns estudiosos.
A carta é um dos retratos mais íntimos de um Luther King que a
maioria das pessoas desconhece: um negro raivoso que havia odiado pessoas
brancas e, segundo um estudioso, era mais perigoso do que Malcolm X, a quem
King admirava.
"Antes de tudo, a Carta, é o grito de dor, raiva e desafio
de um negro", diz Jonathan Rieder, autor do recém-lançado “Gospel of Freedom” que olha para o "furioso proclamador da verdade"
revelado na carta clássica de King.
A negritude de King - seu feroz orgulho racial, sua fé cristã
negra e sua crença de que a maioria dos brancos eram "racistas
inconscientes" – estão em plena exposição em sua carta, dizem os
acadêmicos. A ira que marcou a carta de King se
tornaria mais proeminente nos discursos que King fez antes, literalmente, de suas
últimas horas, diz Rieder.
"Se houvesse um YouTube em 1968 e alguns dos sermões de
King tivessem sido capturados, ele teria sido visto como Jeremiah Wright",
diz Rieder, invocando o nome do ex-pastor flamejante do presidente Obama.
Rieder diz que a dupla natureza de King - o Luther King público
de modos refinados e professorais, e o Luther King privado até sarcástico - se
revezam no centro do ambiente da carta.
Em torno de amigos de confiança, King era um homem que fumava,
matava as pessoas de rir com suas imitações de pregadores negros pomposos e uma
vez terminou abruptamente uma reunião dizendo à sua equipe que ia a um show:
"Sinto muito pessoal, James Brown já está no palco - Fui."
"King era um bruto", diz Rieder, um professor de
sociologia no Barnard College, em Nova York que passou uma década ouvindo as
gravações privadas e públicas de King. Rieder também escreveu “The Word of the Lord is Upon Me” um livro que revelou as discussões de bastidores de Luther King
com amigos e colegas.
No entanto, o Luther King público – homem que nunca adotou o
separatismo negro ou abandonou a não-violência – é igualmente autêntico, diz
Rieder, e sua paixão moral inspirou o ativismo não-violento em todo o mundo.
"As palavras de King – a indignação daqueles que diziam aos
oprimidos para 'esperar por uma época
mais conveniente' – ressoou entre os combatentes da liberdade muito depois
que a Carta foi escrita", escreve Rieder em "Gospel of Freedom".
Jones, o advogado que contrabandeou a Carta para Luther King,
parou de se preocupar sobre a estabilidade emocional de King depois que se
sentou para ler uma versão datilografada das anotações de King.
Jones dera as anotações de King a uma secretária, de 17 anos de idade, da Conferência Sulista de
Liderança Cristã (Southern Christian Leadership Conference), organização
liderada por King. A secretária decifrou os rabiscos de
King e produziu a versão escrita. (Ela reclamou que King podia pregar
bem, mas que suas anotações manuscritas eram muito difíceis de entender.)
"Quando eu li, eu disse: 'Oh meu Deus, é uma obra-prima!", diz Jones, autor do livro de
2011 “Behind the Dream: The Making of the
Speech that Transformed America”.
"Ele não tinha um livro com ele; fez tudo isso de memória.
Com todo o respeito a muitas coisas que ele escreveu, incluindo o discurso ‘Eu
tenho um Sonho’, a Carta é uma das mais profundas (exemplos de) literaturas criadas
no século XX", diz Jones, que ajudou a escrever o discurso do
"Sonho" de King. Hoje, Jones é professor visitante no Stanford University's
Martin Luther King Jr. Research and Education Institute in California.
A carta de King, no entanto, não recebeu muita atenção quando
foi publicada como um panfleto pelos Quakers em maio de 1963. Não produziu um momento de ruptura na campanha de Luther King
contra a segregação em Birmingham - esse momento só chegou quando o reverendo
James Bevel, um dos auxiliares imediatos de Luther King, sugeriu usar crianças
como manifestantes – e foi inicialmente ignorado pela imprensa local e
nacional.
Mas no verão de 1963, a Carta começou a ganhar força, aparecendo
nas revistas Christian Century, Atlantic Monthly e Saturday Evening Post. Rieder diz que ganhou seu maior público como um capítulo
em o popular livro de Luther King, "Why We Can't Wait" de 1964.
Um ministro foi tão inspirado pela leitura da carta de Luther
King no Christian Century que escreveu: "Se o cânon da Sagrada Escritura
não estivesse fechado, eu a nomearia ... como um acréscimo às epístolas na
melhor tradição das cartas paulinas da prisão."
Os clérigos aos quais Luther King dirigiu a sua carta tiveram
uma reação mista, escreveu Rieder em seu livro. Alguns achavam que isso piorava as tensões raciais, enquanto
outro a chamava de
"documento maligno" e reclamou que a partir de então passou o resto da
vida passou a receber cartas perguntando se ainda era um radical.
Luther King no limite
A Carta foi escrita no momento em que Luther King achou que
havia falhado.
Luther King e outros organizaram um protesto maciço em uma das
cidades mais violentamente segregacionistas do sul. O Ku Klux Klan local era um dos mais violentos do país e havia
se infiltrado no departamento de polícia. O KKK fora suspeito
de tantos bombardeios na comunidade negra de Birmingham que a cidade fora
apelidada de "Bombingham". (Quatro meninas
negras, que frequentavam uma igreja negra em Birmingham, seriam mortas por uma
bomba cinco meses depois da carta de King.)
Mas os protestos falharam porque os ativistas não puderam
convocar participantes suficientes e estavam ficando sem recursos para a fiança
daqueles que foram presos. Luther King decidiu que
precisava fazer algo dramático. Ele provocou sua prisão liderando uma
manifestação em 12 de abril de 1963, Sexta-Feira Santa.
A ousadia de Luther King pode ter sido forçada por eventos fora
de Birmingham. Ele havia se tornado uma figura
nacional oito anos antes depois de liderar com sucesso o boicote aos ônibus em
Montgomery, Alabama, o qual levara Rosa Parks à fama. No entanto, ele não havia obtido grandes vitórias desde então e
uma geração mais jovem de ativistas – que realizavam ocupações e marchas – eram
influenciados pelas manchetes e questionavam a firmeza de King.
"Estavam assumindo o protagonismo que fora de Luther
King", diz Clayborne Carson, editor do multi-volume "The Papers of Martin Luther
King, Jr." uma das
mais completas coleções de discursos e escritos de Luther King. A falecida viúva de King, Coretta Scott King, escolheu Carson
para editar os escritos de King.
"Quase tudo o que acontecia naqueles dias não tinha relação
com Luthter Kink", diz Carson, diretor do Instituto Luther King em Stanford. "King precisava desesperadamente de uma vitória
".
O desespero de King se aprofundou depois que ele foi colocado em
confinamento solitário na cadeia de Birmingham. Ele odiava estar sozinho; dependia da companhia de pessoas para apoio
emocional depois de tantas prisões. Também havia sido marcado por uma
experiência anterior, quando fora levado a uma cadeia isolada na área rural da
Geórgia, onde pensou que seria morto.
King também havia sido virtualmente isolado por sua própria
comunidade. Apenas cerca de cinco igrejas negras
em Birmingham permitiram que King usasse seus templos para reuniões de massa. O resto não queria nada com ele, diz Rieder.
"Muitos deles estavam sendo cautelosos em questões políticas",
diz ele. "Eles faziam parte das classes profissionais e não queriam uma
ruptura. Outros não gostaram da ideia de alguém importante chegando para lhes
dizer o que fazer."
Deprimido, irritado e sozinho na cadeia, King leu uma matéria
paga que havia sido publicada em um jornal de Birmingham por oito clérigos
brancos moderados. O jornal foi contrabandeado para King
enquanto ele estava na cadeia. Na matéria, os clérigos chamavam King
de agitador externo e violador da lei, e aconselhavam-no a esperar.
A luta irada de Luther King
King não seguiu o conselho deles. Rabiscando nas margens do jornal ou em qualquer papel que ele
pudesse encontrar, fez-se um profeta furioso. Ele descarregou no clero.
Escrevendo apenas a partir da memória, citou com destreza
Sócrates, Santo Agostinho, o filósofo judeu Martin Buber e o teólogo Paul
Tillich. Ele estava dando aula aos clérigos na
própria área de conhecimento deles – a fé.
Em um ponto da carta, ele respondeu às críticas de que estava
defendendo a quebra das leis segregacionistas em Birmingham. Como um ministro poderia dizer às pessoas para violarem a lei?
Luther King disse que havia uma diferença entre leis justas e
injustas. Uma lei injusta é aquela que um grupo
dominante não está disposto a seguir.
"Nunca devemos esquecer que tudo o que Adolf Hitler fez na
Alemanha era 'legal'", escreveu King. "Era 'ilegal'
ajudar e socorrer um judeu na Alemanha de Hitler."
As chamas emocionais na carta vêm quando King fala como negro,
dizem alguns estudiosos.
Luther King havia detestado os brancos por causa de suas
experiências de crescimento no sul segregado, diz Rieder. Embora King tenha crescido na classe média negra de Atlanta, ele
experimentou todo tipo de humilhação racial e viu os negros serem tratados com
crueldade.
"Ele passou por um período de ódio contra os brancos e
levou algum tempo para superar isso", diz Rieder. "Ele diria que, quando via Malcom X na televisão, havia
momentos em que sentia aquela velha amargura ressurgindo".
King escreveu sobre esse ódio quando estudante de pós-graduação
no Seminário Teológico de Crozer, diz Rieder. Em um artigo intitulado, "Autobiography
of Religious Development," King escreveu sobre como ficou chocado
ao ouvir como seus pais tinham sido insultados pelos brancos. O próprio
Luther King já fora ordenado a deixar seu assento num ônibus por uma pessoa
branca e amaldiçoado como "negro".
"Enquanto meus pais discutiam algumas dessas tragédias ...
eu estava determinado a odiar todas as pessoas brancas", escreveu King. "À medida que os anos passavam, esse sentimento continuava
a crescer ... Eu não superei esse sentimento anti-branco até entrar na
faculdade."
Essa amargura permeia a carta de King.
King escreveu que era fácil para os brancos dizer aos negros que
eles estavam indo rápido demais. Mas quando você "viu multidões
selvagens lincharem suas mães e pais à vontade ... quando seu primeiro nome se
torna 'negro' e seu nome do meio se torna 'menino' (n.t. “neguinho”) ... você
entenderá porque achamos difícil esperar".
King declarou na carta que o "grande obstáculo" para a
liberdade dos negros não era o racista branco, "mas o branco
moderado".
Rieder diz que King se identificou tanto com a ira negra que
quando os distúrbios raciais se espalharam pelos Estados Unidos em meados da
década de 1960, ele se recusou a demonizar os desordeiros negros. King disse uma vez que um motim "é a linguagem dos sem-voz".
"Foi o cristianismo dele que não permitiu que ele odiasse,
mas ele não estava alheio a esses sentimentos", diz Rieder. "Ele não estava acima disso. Ele nunca desconsiderou esses
sentimentos."
King ficou particularmente irritado com a igreja branca. Ele esperava apoio das igrejas brancas do Sul, mas disse na
carta que a maioria "permaneceu em silêncio por trás da segurança
anestesiante dos vitrais".
Ele até se pergunta em sua carta, enquanto relembra de avistar
belas igrejas brancas do Sul durante suas viagens, se elas compartilham a mesma
fé: "Que tipo de pessoas adoram aqui?" ele pergunta. "Quem é o deus deles?"
James Cone, o pai da teologia da libertação negra, diz que King
ficou irado de tal maneira porque amava seu povo.
"O amor é paixão", diz Cone, um professor no Union
Theological Seminary em Nova York. "Se você ama alguém e ele é
machucado, você também sente. King se identificou com negros que experimentaram
injustiça e humilhação. Você não pode olhar para isso e não ficar bravo. A
raiva de King foi expressa exatamente na Carta."
Falando a linguagem do seu povo
King falou a linguagem dos teólogos brancos na carta, mas
mostrou que era bilíngue - que ele também era fluente na língua da igreja
negra, dizem alguns estudiosos.
Em seu livro, "Martin & Malcolm &
America: A Dream or Nightmare" Cone fala sobre o orgulho feroz que King tinha de sua
herança negra.
King falou sobre se orgulhar de seu cabelo crespo. Uma vez disse
a um grupo de ministros que Jesus "não era um homem branco" (ele
disse que a cor de Jesus era irrelevante) e em sua famosa carta e em outro
lugar King ligou o movimento dos direitos civis com os movimentos de libertação
negra na África, diz Cone. (King participou da celebração da
independência do Gana, em 1957, e da Nigéria, em 1960).
Na carta, King se orgulha de ser "filho, neto e
bisneto" dos pregadores negros. Anos antes dos Afros,
Dashikis e Black Power, King havia invocando o orgulho negro.
"Antes de os peregrinos desembarcarem em Plymouth,
estávamos aqui", escreveu King na carta de Birmingham. "Antes que a caneta de Jefferson gravasse as palavras
majestosas da Declaração de Independência ... nós estivemos aqui. Por mais de
dois séculos nossos antepassados trabalharam neste país sem salário; eles fizeram os barões do algodão; eles construíram as
casas de seus senhores enquanto sofriam injustiça grosseira ... e ainda assim, com
uma vitalidade sem fim, eles continuaram a prosperar."
King mantinha um padrão afirmativo da igreja negra. Ele frequentemente citava canções e frases que eram distintas na
igreja negra. Ele encerrou seu discurso "Eu
tenho um sonho" com as palavras de um negro espiritual. O último sermão que ele proferiu na noite anterior ao seu
assassinato - seu discurso "Fui ao topo da montanha" – foi construído
com base na história do Êxodo, uma narrativa bíblica apreciada pelos escravos.
"Quando suas costas estão contra a parede, você não pode
ter uma fé emprestada", diz Cone. "Não é o seu
intelecto que lhe dá coragem. O que lhe dá coragem é aquilo que surgiu de sua
própria história, aquilo que o trouxe para o lugar onde você está."
Cone diz que a raiva de King era mais ameaçadora para os EUA do
que a de Malcolm X.
"As pessoas brancas não gostavam de Malcolm, mas podiam
tolerá-lo porque Malcolm não estava organizando negros de uma maneira que
desafiasse a função do governo", diz Cone. "King estava."
Embora a carta de King fizesse pouca diferença na campanha de
Birmingham, ela estabeleceu um dos seus maiores momentos públicos.
"Se a campanha de Birmingham tivesse fracassado, não teria
havido um discurso do tipo "Eu tenho um sonho" porque ele não teria
sido convidado para dar o discurso "Eu tenho um sonho", diz Carson,
editor dos escritos de King.
King recebeu o cobiçado lugar de fechamento na Marcha de 1963 em
Washington, onde ele estava livre para improvisar o discurso "Eu tenho um
sonho" porque ele não tinha restrições de tempo, diz Carson.
Esse discurso ainda é mais celebrado que a carta de Birmingham.
Rieder, o autor do "Gospel of Freedom", diz que
sabe por quê:
"‘Eu Tenho um Sonho’ é King como um sonhador com crianças
negras e brancas de mãos dadas", diz Rieder. "Torna-se parte do mito de uma sociedade pós-racial: 'Não
somos pessoas de bem?'"
A Carta, diz ele, compromete a tão aceita celebração americana de
Luther King. Muitos americanos não estão prontos
para encontrar-se com o King revelado em sua carta épica.
Aquele King não é um sonhador, diz Rieder, mas outra pessoa: o
negro furioso que se pergunta que tipo de Deus algumas pessoas brancas seguem.